segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Diálogos surtados - Antonin Carême...

Rei dos Cozinheiros, Cozinheiro dos Reis
FG. – Caro mestre, o senhor é considerado pelos amantes da gastronomia, o mais renomado, respeitado e intelectualizado dos chefs... Enfim o maior cozinheiro de todos os tempos...
C.- Pura sorte, mon ami, se meu pai, por excesso de contingente em nossa família, 25 filhos, não tivesse me abandonado na rua naquela fria tarde outonal de 1792, eu não teria sido recolhido por um gorgotier e jamais teria encontrado minha vocação...
FG.- Era uma época terrível...
C. – Uma parte de Paris regozijava de alegria com a estréia de “As Bodas de Fígaro” e o vôo do balão de Montgolfier, e, terrível contraste!, ao mesmo tempo, outra parte sofria os horrores da fome, da miséria e do terrorismo de Robespierre, nos negros dias após a queda de Louis XVI...
FG.- O senhor é o fruto de uma época de verdadeiras mudanças...
C.- E oportunidades... Com a revolução surgiram os restaurantes, que antes não passavam de locais onde se serviam sopas restauradoras da saúde e do bem estar, os bouillon e potage. Havia as feias tabernas, e, um pouco mais acima, alguns fornecedores de mantimentos que eram chamados traiteurs, que possuíam licença especial para isto, essas licenças caíram junto com a bastilha. Os grandes chefs perderam seus empregos na corte e começaram a abrir estabelecimentos que denominaram restaurantes...
FG. - A sopa ainda era o prato principal...
C.- ...E assim deveria ser sempre pois a sopa é saudável, comunitária e democrática. A sopa tem a função de renovar o paladar e preparar o espírito para o restante das refeições.
FG.- Sabemos que o senhor criou centenas de receitas de sopas, mas não foi por causa delas que ficou famoso...
C.- Absolutamente... Meu nome foi feito através da pâtisserie. Aos 16 anos fui trabalhar com Silvain Bailly, um confeiteiro conhecido. Ali aflorou minha criatividade e comecei a desenvolver meu trabalho.
FG.- Paris ressurgia como a “Cidade Luz” – e a capital da gastronomia!
C. – Nessa época nasceu a grande cozinha francesa. Preguei a nova culinária da impregnação e das essências. Aliás, criei o termo nouvelle cuisine, hoje usado para designar a maneira de fazer dos chefs modernos, como Pierre Troigros e Paul Bocuse, que representam perfeitamente o meu ideal gastronômico.
FG. – O senhor, de certa forma, antecipou também a gastronomia molecular, esta nova maneira de compreender racionalmente a transformação dos modos de cozinhar, garantindo, assim, melhor qualidade nutricional, maior precisão nos gestos culinários e melhor sabor dos alimentos...
C.- A apresentação de um prato é tão importante quanto seu sabor e qualidade. A vista colabora para o preparo do olfato e do paladar. O conhecimento e estudo são primordiais em qualquer profissão
Construí minhas pièces montées, que fizeram um grande sucesso, estudando a arquitetura grega... Criei purês, essências e quintessências, em pesquisas trabalhosas e elaborações prévias de extração, concentração e redução... Codifiquei os molhos em quatro, básicos, ou seja: béchamel, velouté, espanhol e alemão. Desses molhos derivam todos os outros. Desenvolvi uma técnica para clarificar o açúcar e dividi em seis os níveis de ebulição, chegando até o de caramelo. Essas técnicas são utilizadas em pâtisserie até hoje com os termos por mim usados. Com meus experimentos pude estruturar o vol-au-vent, o suflê, os suspiros recheados, popularizei o uso dos tomates e do bouquet-garni, diversifiquei molhos e conservas e, até hoje, se usa a toque blanche, o chapéu de cozinheiro, para hierarquizar os cargos numa cozinha. Sempre acreditei que a cozinha deve ter uma rígida organização e de total higiene. Enfim...Estabeleci o profissionalismo!
FG. – O senhor escreveu várias obras...
C. – Sendo a mais importante “A arte da cozinha no séc. XIX” em cinco volumes. “Le pâtissier Royal parisien” e “Le maître d’hôtel français” são relatos dos cardápios por mim preparados nas quatro estações do ano, nas cortes de Paris, Viena, Londres e São Petersburgo.
FG. – Foi na Pâtisserie de Bailly que o senhor conheceu Talleyrand...
C.- ...E o príncipe de Talleyrand me apresentou ao mundo... Contratado como seu cozinheiro, ele, então Ministro das Relações Exteriores de Napoleão, deu-me a oportunidade de mostrar meus trabalhos para as cabeças coroadas mais importantes da Europa... Trabalhei para o Príncipe Regente Jorge, em Londres, o Embaixador Lorde Stewart, em Viena, os Romanov, em São Petersburgo... Além, é claro, de toda a corte de Napoleão – uns nouveaux riches insuportáveis!
FG. – Mas o senhor coroou sua existência colaborando com sua arte e talento para o refinamento das recepções da refinadíssima Mme. Betty de Rothschild...
C.- Os riquíssimos Rothschild sabiam usar sua fortuna para chegar onde queriam. Escolheram certo quando me contrataram para, com minhas criações, seduzir e reunir em torno de si os nomes mais importantes da época. Betty possuía a indiferença do nobre, que dá ao luxo mais suntuoso o ar de um hábito diário...
FG.- Dizem que no final da década de 1820, graças ao seu trabalho, os Rothschild eram o melhor que a corte e a cidade ofereciam em termos de sociedade ilustre...
C.- C’est vrai... pela casa deles passaram os mais importantes intelectuais, músicos e pintores, como o poeta Heine, Victor Hugo, Balzac, Ingres, que realizou um excepcional portrait de Mme. Rothschild, Chopin, Liszt, Paganini, Rossini e os maiores expoentes da ciência, política e comércio daquela fabulosa nova era...
FG. – E o senhor, como o grande Vatel, encontrou a sua madame de Sevigné, em Lady Morgan...
C.- E Lady Morgan escreveu, após o jantar que elaborei para os Rothschild em sua homenagem, seu melhor texto! De dar água na boca... Fala sobre a França casando-a, definitivamente, com a gastronomia. Em “France in 1829” ela conta sobre meu sucesso : “Se distribuíssem coroas a cozinheiros como fazem a atores, alguém deveria ter colocado uma sobre a cabeça de Carême, por esse exemplo de perfeição intelectual de uma arte, padrão, e medida da civilização moderna!”.
FG.- Poderíamos ficar aqui toda uma vida falando sobre o senhor... Entretanto nosso tempo na terra é pouco para narrar tanto talento!
C.- Felizmente, caro amigo, saiu no Brasil um precioso livro para quem quiser conhecer melhor Carême e seu tempo:
“Carême – Cozinheiro dos Reis” de Ian Kelly – pela Jorge Zahar Editor.
FG. – Vale à pena, é realmente uma leitura muito apetitosa!
Agora, que tal darmos um pulo ao “Vernissage”, lá se faz uma comida criativa e com muita arte e profissionalismo...
C.- Será uma delícia! Monsieur Vatel me falou de uma sobremesa instigante... O “mineiro com botas”: bananas caramelizadas com ovos e queijo de Minas, flambadas ao conhaque e com sorvete de creme... Que marrrrrrravilha !!!

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